O CORTIÇO
Aluísio
Azevedo
(...) Algumas lavadeiras enchiam já as suas tinas; outras estendiam nos
coradouros a roupa que ficara de molho. Principiava o trabalho. Rompiam das
gargantas os fados portugueses e as modinhas brasileiras. Um carroção de lixo
entrou com grande barulho de rodas na pedra, seguido de uma algazarra medonha
algaraviada pelo carroceiro contra o burro.
E, durante muito tempo,
fez-se um vaivém de mercadores. Apareceram os tabuleiros de carne fresca e
outros de tripas e fatos de boi; só não vinham hortaliças, porque havia muitas
hortas no cortiço. Vieram os ruidosos mascates, com as suas latas de
quinquilharia, com as suas caixas de candeeiros e objetos de vidro e com seu
fornecimento de caçarolas e chocolateiras, de folhas-de-flandres. Cada vendedor
tinha o seu modo especial de apregoar, destacando-se o homem das sardinhas, com
as cestas do peixe dependuras, à moda de balança, de um pau que ele trazia ao
ombro. Nada mais foi preciso do que o seu primeiro guincho estridente e gutural
para surgirem logo, como por encanto, uma enorme variedade de gatos, que vieram
correndo acercar-se dele com grande familiaridade, roçando-se-lhe nas pernas
arregaçadas e miando suplicantemente. O sardinheiro os afastava com o pé,
enquanto vendia o seu peixe à porta das casinhas, mas os bichanos não desistiam
e continuavam a implorar, arranhando os cestos que o homem cuidadosamente
tapava mal servia ao freguês. Para ver-se livre por um instante dos importunos
era necessário atirar para bem longe um punhado de sardinhas, sobre o qual se
precipitava logo, aos pulos, o grupo de pedinchões.
A primeira que se pôs a lavar
foi a Leandra, por alcunha a “Machona”, portuguesa feroz, berradora, pulsos
cabeludos e grossos, anca de animal do campo. Tinha duas filhas, uma casada e
separada do marido, Ana das Dores, a quem só chamavam a “das Dores”, e a outra
donzela ainda, a Nenen, e mais um filho, o Agostinho, menino levado dos diabos,
que gritava tanto ou melhor que a mãe. A das Dores morava em sua casinha à
parte, mas toda a família habitava no cortiço.
Ninguém ali sabia ao certo se
a Machona era viúva ou desquitada; os filhos não se pareciam uns com os outros.
A das Dores, sim, afirmavam que fora casada e que largara o marido para
meter-se com um homem do comércio; e que este, retirando-se para a terra e não
querendo soltá-la ao desamparo, deixara o sócio em seu lugar. Teria vinte e
cinco anos.
Nenen dezessete. Espigada,
franzina e forte, com uma proazinha de orgulho da sua virgindade, escapando
como enguia por entre os dedos dos rapazes que a queriam sem ser para casar.
Engomava bem e sabia fazer roupa branca de homem com muita perfeição.
Ao lado da Leandra foi
colocar-se à sua tina a Augusta Carne-Mole, brasileira, branca, mulher de
Alexandre, um mulato de quarenta anos, soldado da polícia, pernóstico, de
grande bigode preto, queixo sempre escanhoado e um luxo de calças brancas
engomadas e botões limpos na farda, quando estava de serviço. Também tinham
filhos, mas ainda pequenos, um dos quais, a Juju, vivia na cidade com a
madrinha que se encarregava dela. Esta madrinha era uma cocote de trinta
mil-réis para cima, a Léonie, com sobrado na cidade. Procedência francesa.
Alexandre, em casa, à hora do
descanso, nos seus chinelos, e na sua camisa desabotoada, era muito chão com os
companheiros de estalagem, conversava, ria e brincava, mas envergando o
uniforme, encerando o bigode e empunhando a sua chibata, com que tinha o
costume de fustigar as calças de brim, ninguém mais lhe via os dentes e então a
todos falava teso e por cima do ombro. A mulher, a quem ele só dava tu quando
não estava fardado, era de uma honestidade proverbial no cortiço, honestidade
sem mérito, porque vinha da indolência do seu temperamento e não do arbítrio do
seu caráter.
01. A descrição do amanhecer no cortiço revela que
a) os animais não tinham acesso ao local.
b) o lugar era bastante tranqüilo nas primeiras horas do dia.
c) vendedores de hortaliças eram os primeiros a chegar ao local.
d) o barulho dos mercadores e o movimento eram grandes desde cedo.
02. Qual dos personagens citados no trecho era morador do cortiço?
a) das Dores b) Léonie c) Nenen d) Juju
03. As sensações privilegiadas na descrição do amanhecer no cortiço são
a) tácteis e visuais
b) visuais e auditivas
c) auditivas e olfativas
d) olfativas e tácteis
04. “A primeira que se pôs a lavar foi a Leandra, por alcunha a ‘Machona’...”, o termo em
destaque tem o sentido de
a) referência b)
vontade c) implicância d) apelido
05. O trecho informa que Alexandre
a) era casado com Leandra, uma portuguesa.
b) vivia com uma cocote num sobrado na cidade.
c) Era um sujeito muito pedante e elegante quando estava de serviço.
d) Estava sempre sorridente e cheio de camaradagem com as pessoas do
cortiço.
06. “Para ver-se livre por um instante dos importunos era necessário atirar bem longe um punhado de
sardinhas”, o termo em destaque se refere
a) aos gatos b) aos
mercadores c) aos fregueses d) aos mascates
07. “...arranhando os cestos que o homem
cuidadosamente tapava mal
servia ao freguês”, a palavra em destaque no trecho foi utilizado para
expressar
a) modo
b) causa c)
lugar d) tempo
Gabarito: 01. d 02.
c 03. b 04. d 05. c 06. a 07. d
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